O controle da fala
Quando se fala em austeridade
mental, pensa-se imediatamente nas longas meditações que levam ao controle do
pensamento, e que são coroadas pelo silêncio interior. Esse aspecto da
disciplina ióguica é conhecido demais para que ainda seja necessário
estender-se sobre o assunto. Mas há um outro, com o qual as pessoas geralmente
se preocupam menos: é o controle da fala. Com raríssimas exceções, só o
silêncio absoluto é contraposto à livre tagarelice. No entanto, há uma
austeridade muito maior e mais fecunda no controle da fala do que em sua
abolição.
Na terra, o homem é o primeiro
animal capaz de servir-se de sons articulados. Ele é muito orgulhoso disso,
aliás, e utiliza essa capacidade sem medida nem discernimento. O mundo está ensurdecido
pelo ruído de suas palavras, e às vezes se é tentado a lastimar o silêncio
harmonioso do reino vegetal.
É, aliás, um fato bem conhecido
que quanto menor o poder mental, mais é necessário o uso da palavra. Assim, há
pessoas primitivas e sem instrução que não conseguem pensar coisa alguma a
menos que falem. Podemos ouvi-las resmungando em voz mais ou menos baixa.
Porque este é seu único meio de seguir um pensamento que não se formularia
nelas sem as palavras pronunciadas.
Há também um grande número de
pessoas, mesmo entre as que receberam instrução, mas cujo poder mental é fraco,
que só sabem o que querem dizer à medida que o dizem. Isso torna suas conversas
intermináveis e tediosas. Pois à medida que falam, seu pensamento se torna mais
claro e mais preciso, e assim elas são obrigadas a repetir a mesma coisa várias
vezes, a fim de dizê-las cada vez mais exatamente.
Há aquelas que devem preparar com
antecedência o que terão a dizer, e que ficam embaraçadas se são obrigadas a
falar de improviso, porque não tiveram tempo de elaborar progressivamente os
termos exatos daquilo que querem dizer.
Há, enfim, os oradores natos que
têm o domínio da elocução; eles acham espontaneamente todas as palavras
necessárias para dizer o que querem dizer, e o dizem bem.
Tudo isso, no entanto, do ponto
de vista da austeridade mental, não sai da categoria das tagarelices. Pois eu
chamo tagarelice todas as palavras pronunciadas sem que sejam absolutamente
indispensáveis. Como julgá-lo? pode-se perguntar. Para isso, é preciso primeiro
classificar de uma maneira geral as diferentes categorias de palavras
pronunciadas.
Temos primeiro, no domínio
físico, todas as palavras ditas por razões materiais. São de longe as mais
numerosas, e, na vida comum, muito provavelmente também as mais úteis.
O constante zumbido das palavras
parece o acompanhamento indispensável das tarefas cotidianas. No entanto, logo
que se procura reduzir o ruído ao mínimo, percebe-se que muitas coisas são
feitas melhor e mais rápido no silêncio, e que isto ajuda a manter a paz no
interior e a concentração.
Se você não é sozinho e vive com
outros, adquira o hábito de não se exteriorizar constantemente em palavras
pronunciadas em voz alta, e você perceberá que pouco a pouco uma compreensão
interior se estabelece entre você e os outros; você poderá então
intercomunicar-se reduzindo as palavras ao mínimo, ou mesmo sem palavra alguma.
Esse silêncio exterior é muito favorável à paz interior, e com boa vontade e
constância na aspiração você poderá criar um ambiente harmonioso, muito
propício ao progresso.
Na vida em comum, às palavras que
dizem respeito à existência e às ocupações materiais virão juntar-se aquelas
que exprimem as sensações, os sentimentos, as emoções. É aqui que o hábito do
silêncio exterior se revela como uma ajuda preciosa. Pois quando somos
invadidos por uma onda de sensações ou de sentimentos, esse silêncio habitual
nos dá tempo de refletir e, se for preciso, de nos retomarmos, antes de
projetarmos em palavras a sensação ou o sentimento experimentado. Quantas
disputas podem assim ser evitadas! Quantas vezes seremos salvos de uma dessas
catástrofes psicológicas que são, na sua maioria das vezes, o resultado de uma
incontinência verbal.
Sem chegar até esse extremo, é
preciso sempre controlar as palavras que pronunciamos e nunca deixar a língua
ser movida por movimento de cólera, de violência ou de irritação. Não é só a
disputa que é má em seus resultados; é o fato de emprestar nossa boca para que
vibrações más sejam projetadas na atmosfera, porque nada é mais contagioso do
que as vibrações do som, e dando a esses movimentos a ocasião de se exprimirem,
os perpetuamos em nós e nos outros.
Entre os mais indesejáveis tipos
de tagarelice deve-se incluir também tudo o que é dito a respeito dos outros.
A menos que você seja responsável
por certas pessoas, como guardião, instrutor ou chefe de serviço, você não tem
nada a ver com o que os outros fazem ou não fazem e é preciso abster-se de
falar deles, de dar sua opinião sobre eles e sobre o que fazem, ou mesmo de
repetir o que os outros podem pensar e dizer deles.
É possível que pela própria
natureza de seu trabalho, seja seu dever fazer um relatório sobre o que se
passa num departamento, numa empresa, num trabalho em comum. Nesse caso, o
relatório deve limitar-se àquilo que diz respeito só ao trabalho, e não tocar
nas coisas privadas. E de uma maneira absoluta, deve ser totalmente objetivo.
Você não deve permitir que nenhuma reação pessoal, nenhuma preferência, nenhuma
simpatia ou antipatia seja introduzida nele. E, sobretudo, nunca misture seus
mesquinhos rancores pessoais ao trabalho que lhe compete fazer.
Em todos os casos e de uma
maneira geral, quanto menos se fala dos outros, mesmo se for para elogiá-los,
melhor. Já é tão difícil saber exatamente o que acontece em si mesmo, como
saber com certeza o que acontece nos outros? Abstenha-se, portanto, totalmente
de pronunciar sobre uma pessoa um desses julgamentos definitivos que só podem
ser uma tolice, se não uma maldade.
Quando o pensamento é exprimido
pela palavra, a vibração do som tem um poder considerável de colocar a
substância mais material em contato com esse pensamento e dar-lhe assim uma
realidade concreta e efetiva. É por isso que não se deve nunca maldizer as
pessoas e as coisas, nem exprimir pela palavra pronunciada em voz alta as
coisas que no mundo contradizem o progresso da realização divina. Esta é uma regra
geral absoluta. No entanto ela comporta uma exceção. Nenhuma crítica deve ser
feita, a menos que se tenha ao mesmo tempo o poder consciente e a vontade ativa
de dissolver os movimentos ou as coisas criticadas, ou de transformá-los. Esse
poder consciente e essa vontade agente têm efetivamente a capacidade de
infundir na matéria a possibilidade de reagir e de recusar a vibração má e
finalmente de corrigi-la, a ponto de se tornar impossível para ela continuar a
exprimir-se no plano material.
Só pode fazê-lo sem risco e sem
perigo quem se move nas regiões gnósticas, e quem possui em suas faculdades
mentais a luz do espírito e o poder da verdade. Esse, o obreiro do Divino, está
livre de toda preferência e de todo apego; ele rompeu em si mesmo os limites do
ego e não é mais que um instrumento perfeitamente puro e impessoal da ação
supramental sobre a terra.
Há também todas as palavras
pronunciadas para exprimir as idéias, as opiniões, os resultados das reflexões
ou dos estudos. Aqui nos achamos num domínio intelectual, e poderíamos pensar
que nesse domínio os homens fossem mais razoáveis, mais ponderados, e que a
prática de uma austeridade rigorosa fosse aí menos indispensável. No entanto,
não é nada disso, porque mesmo aí, nessa morada das idéias e do conhecimento, o
homem introduziu a violência de suas convicções, a intolerância de seu
sectarismo, a paixão de suas preferências. Assim, também aqui, será preciso
recorrer à austeridade mental e evitar cuidadosamente as trocas de idéias que
acabam levando a controvérsias amiúde ásperas demais e quase sempre ociosas,
evitar as oposições de opiniões que terminam em discussões vivas e mesmo em
disputas, vindo sempre de uma estreiteza de espírito facilmente curável quando
nos elevamos bastante alto no domínio mental.
De fato, o sectarismo torna-se
torna-se impossível quando se sabe que todo pensamento formulado é apenas uma
maneira de dizer alguma coisa que escapa a toda expressão. Cada idéia contém um
pouco de verdade ou um aspecto da verdade. Mas não há idéia que seja em si
mesma absolutamente verdadeira.
Este sentido da relatividade das
coisas é uma ajuda poderosa para manter seu equilíbrio e conservar uma serena
ponderação em seu falar. Ouvi um velho ocultista, que possuía alguma sabedoria,
dizer: “Não há coisa alguma que seja essencialmente má; há apenas coisas que
não estão em seu lugar. Coloque cada coisa em seu lugar verdadeiro e você
obterá um mundo harmonioso”.
No entanto, do ponto de vista da
ação, o valor de uma idéia existe em função de seu poder pragmático. Este
poder, é verdade, é muito diferente, de acordo com os indivíduos aos quais se
aplica. Uma idéia determinada que tem num indivíduo um grande poder
impulsionador, num outro pode falhar totalmente. Mas esse poder é, ele
mesmo,contagioso. Certas idéias são capazes de transformar o mundo. São essas
que devem ser exprimidas; elas são as estrelas mestras do firmamento do
espírito, aquelas que servirão de guias para conduzir a terra em direção a sua
realização suprema.
Finalmente, temos todas as
palavras pronunciadas com o objetivo de dar um ensinamento. Esta categoria se
estende do jardim de infância até os cursos universitários, sem esquecer todas
as produções humanas artísticas e literárias que pretendem divertir ou educar.
Nesse domínio tudo depende do valor da produção, e o assunto é vasto demais
para poder ser tratado aqui. É um fato que a preocupação com a educação está
muito em voga atualmente, e esforços louváveis têm sido feitos para utilizar as
novas descobertas científicas, colocando-as a serviço da educação. Mas mesmo
nisto uma austeridade se impõe ao aspirante à verdade.
Admite-se geralmente, no processo
educativo, que um certo gênero de produções mais leves, mais fúteis, mais
divertidas seja necessário para reduzir a tensão do esforço e descansar as
crianças e mesmo os adultos. De um certo ponto de vista, isso é verdadeiro; mas
infelizmente essa admissão serviu de desculpa para legitimar toda uma categoria
de coisas que não são nada mais do que o florescimento de tudo o que é vulgar,
grosseiro e baixo na natureza humana; seus instintos mais canalhas, seu gosto
mais depravado encontram nessa admissão uma boa desculpa para se exibirem e se
imporem como uma necessidade inevitável. E, no entanto, não é nada disso; você
pode descansar sem ser devasso repousar sem ser vulgar, relaxar sem permitir
que tudo o que é grosseiro na natureza venha à superfície. Mas do ponto de
vista da austeridade, estas próprias necessidades mudam de natureza; o descanso
se transforma em silêncio interior, o repouso em contemplação e o relaxamento
em felicidade.
Essa necessidade tão geralmente
reconhecida de distração, relaxamento no esforço, esquecimento mais ou menos
longo e total do objetivo da vida, da razão de ser da existência, não deve ser
considerada como uma coisa absolutamente natural e indispensável, mas como uma
fraqueza à qual se cede por falta de intensidade na aspiração, por
instabilidade na vontade, por ignorância, inconsciência, baixeza. Não legitime
esses movimentos e você perceberá logo que eles são necessários e até, num dado
momento, passarão a ser repugnantes e inaceitáveis para você. Então toda uma
parte, e não a menor, da produção humana dita recreativa, mas em verdade
degradante, perderá seu suporte e cessará de ser encorajada.
Entretanto, não se deve pensar
que, da natureza do assunto da conversa, depende o valor das palavras
pronunciadas. Pode-se tagarelar sobre os assuntos espirituais como sobre
qualquer outro, e essas tagarelices talvez estejam entre as mais perigosas. Por
exemplo, o neófito está sempre muito ansioso em compartilhar com outros o
pouquinho que aprendeu. Mas à medida que ele avança no caminho, percebe mais e
mais que não sabe muita coisa e que antes de querer instruir os outros é
preciso estar bem seguro do valor do que se sabe, até o dia em que, tendo-se
tornado razoável, ele se dá conta de que numerosas horas de concentração
silenciosa são necessárias para poder falar utilmente durante alguns minutos.
Além disso, no que tange à vida interior e ao esforço espiritual, o uso da
palavra deve ser submetido a uma regulamentação ainda mais estrita, e nada deve
ser dito a menos que seja absolutamente indispensável dizê-lo.
É um fato bem conhecido que não
se deve nunca falar de suas experiências espirituais, se não se quer ver dissipar-se
num instante a energia acumulada na experiência, e que deveria servir para
apressar o progresso. A única exceção que pode ser feita à regra é em relação a
seu guru, se se quiser obter dele algum esclarecimento ou algum ensinamento
sobre o conteúdo e o significado da experiência realizada. De fato, é só ao
guru que se pode falar dessas coisas sem perigo, porque só o guru, por seu
conhecimento, é capaz de utilizar para o bem de seu discípulo os elementos da
experiência como degraus para novas ascensões.
É verdade que o próprio guru está
submetido à mesma regra de silêncio no que lhe diz respeito pessoalmente. Na
natureza tudo está em movimento; assim, aquele que não avança, recua
necessariamente. O guru deve fazer progressos da mesma maneira que seus
discípulos, embora esses progressos possam não estar no mesmo plano. E para ele
também, falar de suas experiências não é favorável: a força dinâmica de
progresso contida na experiência se evapora em grande parte nas palavras. Por
outro lado, explicando suas experiências a seus discípulos, ele ajuda
poderosamente a compreensão e, portanto, o progresso deles. Cabe a ele, em sua
sabedoria, saber até que ponto ele pode e deve sacrificar um pelo outro. Não é
preciso dizer que em seu relato não deve entrar nenhuma ostentação, nenhuma
vanglória; porque a menor vaidade faria dele não mais um guru, mais um
impostor.
Quanto ao discípulo, eu direi a
ele: “Em todos os casos sê fiel a teu guru, seja ele como for; ele te levará
tão longe quanto puderes ir. Mas se tiveres a felicidade de ter o Divino como
guru, aí não haverá limites à tua realização”.
No entanto, mesmo o Divino,
quando se encarna sobre a terra, está submetido à mesma lei de progresso. O
instrumento de sua manifestação, e ser físico de que ele se revestiu, deve está
num constante estado de progresso, e a lei de sua expressão pessoal está de
alguma maneira ligada à lei geral do progresso terrestre. Assim, mesmo o deus
encarnado só poderá ser perfeito sobre a terra quando os homens estiverem
prontos para compreender e para aceitar a perfeição. Será o dia em que poderá
ser feito por amor ao Divino o que agora se faz por dever em relação a Ele. O
progresso será uma alegria, em vez de ser um esforço e freqüentemente até uma
luta. Ou mais exatamente, o progresso se fará na alegria, com a plena adesão de
todo o ser, em vez de se fazer através de coerção sobre a resistência do ego,
necessitando um grande esforço e às vezes mesmo um grande sofrimento.
Para concluir, eu lhe direi: “Se
você quiser que sua palavra exprima a verdade e que assim adquira o poder do
Verbo, nunca pense com antecedência no que você quer, não decida o que é bom ou
ruim dizer, não calcule qual será o efeito do que você vai dizer. Seja
silencioso mentalmente e mantenha-se sem vacilar na atitude verdadeira, a de
uma aspiração constante à sabedoria plena, ao conhecimento pleno, à consciência
plena. Então, se sua aspiração for sincera, se ela não é uma capa para sua
ambição de fazer as coisas bem e de obter sucesso, se ela for pura, espontânea
e integral, aí você poderá falar muito simplesmente, você poderá pronunciar as
palavras que devem ser ditas, nem mais nem menos, e elas terão um poder
criador”.
(Do livro “As quatro austeridades
e as quatro libertações”, de Mira Alfassa – A Mãe, do Sri Aurobindo Ashram).
http://pereneconsciencia.blogspot.com.br
Seja também um semeador.
A Vida é um eterno aprendizado...
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